Depois de inventar a classe média dos R$ 300, PT está prestes a declarar oficialmente o fim da miséria que, a rigor, já não existia. Veja como e por quê
Desde que chegou ao poder, o PT vem se dedicando, com a preciosa colaboração teórica dos chamados “economistas da pobreza”, a erradicar a miséria por decreto. Dilma está a um passo de declarar o Brasil um país “sem miseráveis”. Está por um triz. E como isso foi feito? Inventou-se a existência de milhões de pessoas que estariam na “pobreza extrema”, as famílias com renda per capita de até R$ 70 mensais — R$ 2,33 por dia. Caso se faça um levantamento a sério, vai-se constatar que essas pessoas até podem existir no campo (e olhem lá!) — na cidade, não! Na zona rural, acabam sobrevivendo porque, ainda que precariamente, produzem parte do que comem. Nas cidades, fazendo bico aqui e ali, a renda é maior do que isso. Muito maior! Mesmo a daqueles oficialmente listados entre os extremamente miseráveis. Os pobres desgraçados do crack, que já estão sem casa, sem calçado, quase sem roupa, têm renda superior a R$ 2,33 por dia. Sabem por quê? Cada pedra custa R$ 10! O que estou dizendo é que existe uma economia informal que eleva essa renda.
Na era petista, estamos vivendo uma enorme fantasia e uma confusão desgraçada de números. Daqui a pouco, não restará mais um miserável no Brasil. O sujeito pode morar num barraco à beira de um córrego fétido, sem água nem saneamento, não ter acesso a saúde, educação e transporte, mas miserável não será mais porque, com o dinheirinho de uma das “bolsas”, ele já terá uma renda superior a R$ 70. Milagre do governo Lula! Milagre do governo Dilma! Ocorre, e bastaria um estudo sério de campo para constatá-lo, que ele já tinha uma renda superior a esse piso. E faz tempo! Ou comporia uma horda de famélicos — o que também não existe. Os catadores de papelão que moram nos baixos de viadutos ganham bem mais do que R$ 2,33 por dia. Qualquer pedinte arrecada por dia um valor superior a esse. O PT inventou milhões de miseráveis nessa categoria para poder declará-los extintos.
Nos patamares mais elevados de renda, aí a fantasia é outra. Inventou-se uma tal classe média que já corresponderia a 54% da população brasileira. E que classe média é essa? Segundo a SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos, são as famílias com renda per capita, atenção!, entre R$ 300 e R$ 1.000. Um casal cujo marido ganhe o salário mínimo (R$ 678) — na hipótese de a mulher não ter emprego — já é “classe média” — no caso, baixa classe média (com renda entre R$ 300 e R$ 440). Se ela também trabalhar, recebendo igualmente o mínimo, aí os dois já saltarão, acreditem, para o que a SAE considera “alta classe média” (renda per capita entre R$ 640 e R$ 1.020). Contem-me aqui, leitores, como vive e onde mora que tem um renda per capita de R$ 640! O aluguel de um único cômodo na periferia mais precária não sai por menos de R$ 250…
Segundo a SAE, renda per capita acima de R$ 1.020 já define classe alta. Na minha casa, somos da classe alta os que aqui moramos e a nossa empregada, além de todos os porteiros do prédio. É brincadeira! Estamos em plena fase de surto estatístico. E, como de hábito, não se ouve um pio — da oposição tampouco.
No Globo, o repórter Demétrio Weber começa a desfazer ao menos parte da confusão. Vale a pena ler o texto em que demonstra que o governo usa, a cada hora, um número. Leiam. Volto para arrematar:
*
A promessa da presidente Dilma Rousseff de erradicar a miséria até 2014 continua de pé, mas o tamanho do desafio mudou — sem maiores explicações por parte do governo. Quando lançou o programa Brasil sem Miséria, em junho de 2011, Dilma dizia que era preciso resgatar 16,2 milhões de brasileiros da pobreza extrema. O número tinha origem no censo do IBGE, de 2010. Nas últimas semanas, porém, ela tem afirmado que os programas sociais já retiraram da miséria 19,5 milhões de pessoas nos últimos dois anos. Ou seja, 3,3 milhões a mais do que o número informado por ela mesma.
Isso não significa que a pobreza extrema tenha acabado: desde dezembro, Dilma passou a dizer que ainda falta atender, pelo menos, outros 2,5 milhões de miseráveis. O que elevaria para 22 milhões de pessoas o universo de extremamente pobres na mira do governo, no atual mandato. Portanto, 5,8 milhões a mais do que os 16,2 milhões de miseráveis identificados pelo Censo de 2010.
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, os números usados por Dilma têm origem no Cadastro Único (CadÚnico), lista oficial da população de baixa renda produzida pelas prefeituras, que são encarregadas de coletar os dados. Diferentemente do IBGE, que obtém informações para fins estatísticos, o CadÚnico é a porta de acesso ao Bolsa Família. Os dados do CadÚnico são chamados de registros administrativos e devem ser atualizados a cada dois anos. De novo, pelas 5,5 mil prefeituras.
O ministério diz que o cadastro foi modernizado ao longo de 2011, e constitui atualmente uma fonte mais apropriada para medir a “pobreza longitudinal” no país. Assim, quando Dilma afirma que 19,5 milhões de pessoas saíram da miséria, passando a viver com renda familiar per capita superior a R$ 70, está se referindo aos registros do CadÚnico.
Segundo o ministério, antes do lançamento do Brasil sem Miséria, em 2011, havia 22,1 milhões de extremamente pobres, conforme o CadÚnico. Na ocasião, porém, o governo optou por utilizar os números do IBGE, que indicavam 16,2 milhões nessa situação.
O conceito de miséria adotado pelo governo é exclusivamente monetário: famílias com renda por pessoa de até R$ 70 mensais são classificadas como extremamente pobres.
(…)
Em meio à dança de números, Dilma prometeu anteontem que o universo remanescente de 2,5 milhões de miseráveis deixará a pobreza extrema até março. Ela não explicou como isso será feito. Para produzir tamanho resultado em menos de dois meses, só há um caminho: criar uma nova modalidade de repasse do Bolsa Família ou de seu congênere, o Brasil Carinhoso, que dá benefícios adicionais ao público do Bolsa Família.
Ex-economista sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Flávio Comin, atualmente professor na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, diz que os dados sobre miseráveis no Brasil são dissonantes: há divergência até mesmo entre o Censo e a Pnad do IBGE. Ele critica o conceito de miséria adotado pelo governo: “Todas essas estimativas compartilham o mesmo entendimento de que os pobres são aqueles que sofrem de insuficiência de renda. Esquecem, assim, que pessoas que estão acima da linha da pobreza oficial, mas que não dispõem de acesso à saúde ou educação dignas, também deveriam ser considerados pobres”, diz Comin, por e-mail.
É o reino da fantasia. Mas quem se atreverá a chamar as coisas pelo nome?
Reinaldo Azevedo
Análises políticas em um dos blogs mais acessados do Brasil
Comentários